As mil vozes do México |
Fernando del Paso
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O México tem mil vozes: é impossível abrangê-lo. O México canta com a voz de seus poetas e os pincéis de seus artistas. O México fala com a voz polifônica de sua música e suas danças. Com a sua arquitetura. Com sua flora e sua fauna. O México fala com a voz multicor de seus artesanatos e entoa um hino gastronômico com sua fabulosa culinária. O México fala com a voz da magia e dos vestígios de outros impérios. O México, também, canta com a voz de suas paisagens. Conhecido como o país dos catorze climas, em seu imenso território abriga selvas e florestas tropicais, desertos, bosques alpinos, abismos insondáveis como a Barranca do Cobre, cavernas gigantescas como as grutas de Cacahuamilpa e as de Justlahuaca, que contêm pinturas rupestres. E seus mais de onze mil quilômetros de litoral oferecem algumas das praias mais belas do mundo, entre elas aquelas do lendário Acapulco, as de Huatulco e as hoje célebres de Cancún, onde a água tem uma surpreendente transparência azul turquesa. O México também fala com o resplendor de seu sol e a mornidão de seus mares. E canta com o murmúrio de seus rios e os reflexos de seus lagos e suas lagoas: o Papaloapan ou rio das borboletas, o Usumacinta, a lagoa de Términos, as lagoas de Montebello, o lago de Pátzcuaro o lago de Chapala no estado de Jalisco e Michoacán, que, devido às suas dimensões - 86 quilômetros de comprimento - foi chamado pelos espanhóis de Mar Chapálico. O México, terra vulcânica, fala com o fogo e o estrondo de suas entranhas: vulcões como o Paricutín - hoje uma torrente de lava negra petrificada - e o Chichonal, passaram para a história das fúrias do deus do inferno, e um majestoso vulcão nevado, que ameaça acordar, o Popocatépetl, preside o Vale do México ou Vale do Anáhuac. Ao seu lado encontra-se uma grande montanha, também nevada, o Iztaccíhuatl, que tem a forma de uma mulher deitada, coberta por um sudário imaculado. O Popocatépetl, diz a lenda, é o guerreiro inconsolável que chora, pela eternidade, a sua amada morta. Entre estes dois gigantes passou Hernán Cortés na viagem que iria conduzi-lo até o centro do Império Asteca, à grande cidade de Tenochtitlán, à terra da águia e da serpente e dos corações fumegantes. A abundância de climas diferentes propiciou a existência de uma fauna e de uma flora de enorme variedade. Cabe destacar alguns animais aborígines como a iguana, o manati ou peixe-boi, o misterioso axolotle - que inspirou um conto magistral ao argentino Julio Cortázar -, a nútria e o cão chihuahua, que tanto impressionaram e preocuparam o Cronista das Índias, o Padre Acosta, porquanto nenhum deles teria embarcado na Arca de Noé. A fauna marinha também é impressionante. Na Ilha Mulheres, em frente de Cancún, existem reservas de peixes tropicais de deslumbrante beleza. Chegam, da mesma forma, até Celestún, não muito longe, miríades de flamingos, que, junto com as borboletas Monarca, chegam aos milhões todo mês de fevereiro ao estado de Michoacán e infinidade de aves, como as garças e o pato selvagem, fazem parte das migrações que enriquecem temporariamente a nossa fauna. E na lagoa marinha Olho da Lebre, na Baixa Califórnia, as baleias cinzentas cumprimentam os turistas com seus jatos festivos, enquanto no porto de Topolobampo famílias inteiras de golfinhos escoltam as embarcações desenhando arcos no ar. Na costa do Atlântico, alguns esportistas exercitam-se na pesca do sábalo e do espadarte. As cidades de Cuernavaca e Guadalajara - capitais de Morelos e Jalisco, respectivamente - servem para ilustrar a opulência de nossa flora. Além de árvores como o tabachín, com flores da cor do fogo, e o jacarandá, de flores cor lilás escuro, dão, nos climas cálidos, numerosas flores de vistosos coloridos e deliciosos aromas. A flor do México é a Dália, que fora adotada pela Imperatriz Josefina. Destas terras partiram, também, flores como a magnolia e a flor de Nochebuena, ou poinsettia. E também as flores que ornavam o peito de Margarita Gautier, heroína do romance de Alexandre Dumas filho, conhecida também como a Dama das Camélias, bem como uma infinidade de orquídeas. E da Europa e de outras partes chegaram flores como a rosa e a buganvília, planta, esta última, que deve seu nome ao Conde de Bouganville e cujas brácteas simulam flores cujas cores e matizes oscilam entre o laranja e o branco, o carmesim, o magenta e o cor-de-rosa suave. Flores como estas fazem um paraíso de Cuernavaca - a cidade de "Sob o Vulcão" de Malcon Lowry - e de Guadalajara, a cidade que, como diz a canção, tem cheiro de terra molhada e de pura rosa da manhã. Estaríamos errados, contudo, se encerrássemos esta relação sem mencionarmos a outra espécie clássica do México: o cempasúchil ou flor de defunto, de intensa cor amarela. Ruína é uma palavra ruim, embora aceita mundialmente. Mas eu não chamaria de ruínas os restos arqueológicos das culturas pré-hispânicas da América Latina - a Asteca, a Tolteca, a Maia e a Inca, entre as mais notáveis. Não, não são ruínas, são vestígios dos deuses, o testemunho soberbo e dolorido de civilizações teocráticas de perturbadora grandeza, cuja vida foi cortada, de um golpe só, pela conquista. Através destes sinais sagrados, destas pedras, fala o coração do México antigo, o México dos quatro sóis da cosmogonia Tolteca. As monumentais pirâmides do Sol e da Lua em Teotihuacán, estado do México, bem como os vestígios encontrados em Montealbán, em Oaxaca; Palenque, em Chiapas; o Tajín, em Veracruz; os gigantes de Tula, em Hidalgo; constituem visita obrigatória de todo mexicano e todo turista, e, certamente, as maravilhosas construções maias de Uxmal e Chichén-Itzá, em Yucatán e, em Quintana Roo; na orla do mar do Caribe, Tulum. Na cidade do México, encontra-se o Museu de Antropologia, cujo extraordinário conteúdo, inimaginável, de peças das culturas pré-colombianas da Mesoamérica, inclui a formidável escultura da deusa Coatlicue, e o calendário Asteca. Este museu, projetado pelo arquiteto Pedro Ramírez Vázquez, e que possui beleza e funcionalidade surpreendentes, leva-nos à história da arquitetura mexicana. É bem verdade que, infelizmente, foi muito o que os espanhóis destruíram, porquanto costumavam levantar seus templos sobre os restos dos templos indígenas. Mas é também verdade que eles nos deixaram edificações de beleza imaculada. Gótico, isabelino, mudéjar, renascentista, plateresco, churrigueresco, maneirista, rococó, barroco: todos os estilos encontraram lugar, corpo e alma na Nova Espanha durante os três séculos que durou a colônia. Basta citar apenas alguns exemplos, como o templo de Santa Prisca, em Taxco, o portal da catedral de Zacatecas, a capela churrigueresca de Aranzazú, em Guadalajara e o interior da catedral da mesma cidade, exemplo prístino do gótico. Casos de um barroco caprichoso e fantástico, o templo de Santo Domingo em Oaxaca, e as capelas do Rosário em Puebla, e a de São Francisco Xavier no estado do México, cujos imensos retábulos dourados são outros tantos outonos de Vivaldi, congelados. Próximo de Puebla, encontra-se o santuário de Santa Maria Tonanzintla, em cujos muros e abóbadas - assim como nos rostos dos mais de mil anjos que nos contemplam - transbordou o colorido e a imaginação de um barroco que já é mais mexicano que europeu. E, a apenas um passo, o templo de São Francisco Acatepec, com sua fachada tapizada com azulejos de Talavera. Durante a colônia, Manuel Tolsá, escultor e arquiteto valenciano, veio para se estabelecer em nosso país e fez uma das esculturas eqüestres mais importantes do mundo, a de Carlos IV, na cidade do México, onde também construiu o magnífico Palácio de Minería. Em Guadalajara, Tolsá projetou o Hospício Cabañas, que hoje abriga os famosos murais de Orozco, de quem nos ocuparemos mais adiante. Seria impossível mencionar, aqui, todas as outras construções da colônia que muito contribuíram para a beleza perene de cidades mexicanas como Guanajuato, Morelia, Zacatecas, Taxco, Guadalajara, San Luis Potosí, e, portanto, daremos um salto até o nosso século, quando surgem os estilos art-nouveau e art-déco na capital, nos bairros Roma e Hipódromo, respectivamente, e o México aproveita o talento de arquitetos estrangeiros, como os italianos Adamo Boari, que construiu o belo prédio dos Correios da capital e projetou o templo Expiatório de Guadalajara, e Silvio Contri, autor de uma maravilha arquitetônica que hoje abriga o Museu Nacional de Arte, no Distrito Federal. Na arquitetura art-déco, um lugar especial é detido pelo que é hoje o Monumento à Revolução, porém, sem qualquer dúvida, a principal realização nesse estilo, e o mais espetacular de todo o país, é o Palácio das Belas Artes, projetado por Boari e concluído, anos mais tarde, pelo mexicano Federico Mariscal. Entre outras maravilhas, este teatro conta com uma cortina de cristais, formada por um milhão de peças, que reproduz a paisagem do Vale do México e que foi fabricada pela firma Tiffany de Nova York. A arquitetura moderna mexicana, que tanta fama tem no mundo, nasce com Luis Barragán, originário do estado de Jalisco com enorme talento que, fazendo uso de assimetrias, grandes espaços, linhas retas e cores ousadas revolucionou a construção de casas e edifícios. Subitamente, parecia que nos muros de residências, hotéis e templos surgiam as vivas cores das suculentas frutas mexicanas: o verde fresco e sumarento de suas tunas (frutos de cactos), o roxo profundo da pitahaya, o amarelo contundente da manga, o vermelho em carne viva da melancia. Gama à qual foram acrescentados o azul cobalto e a cor da canela. Deve-se a Barragán a Casa González Luna, em Guadalajara e, em colaboração com o escultor Mathias Goeritz, as torres de concreto, sólidos e cegos arranha-céus coloridos que, no norte da capital, erguem-se, senhoriais, na entrada da Cidade Satélite. O melhor discípulo de Barragán é, sem dúvida, Ricardo Legorreta, que com seus associados construiu o incrível museu Marco da cidade de Monterrey. E não podemos deixar de mencionar outros arquitetos modernos, como Abraham Zabludovsky e Fernando González Gortázar cuja obra, cheia de originalidade e beleza, fala também, com orgulho, da arquitetura mexicana. E da mesma forma, de Teodoro González de León, cuja mais recente construção, o Conservatório do Centro Nacional das Artes, é um poema da idade do mármore e da alvura. [ González de León, junto com Abraham Zabludosky, desenharam a Embaixada do México em Brasília. ] Para a Virgem de Guadalupe, sem a qual o México não seria o México, o antes citado arquiteto Ramírez Vázquez construiu uma enorme e luminosa basílica, visitada a cada ano por centenas de milhares de peregrinos. Vale a pena, por último, mencionar as experiências de integração plástica à arquitetura, baseadas em ornamentações de raiz indigenista e que incorporaram, em diversos edifícios importantes, murais e esculturas/pinturas de artistas tão importantes quanto David Alfaro Siqueiros, Diego Rivera e Juan O'Gorman. Exemplos notáveis disso podem ser vistos, na capital, na Reitoria da Cidade Universitária e no Estádio Olímpico. Isto tudo nos conduz à pintura. Durante a colônia e o primeiro século de sua independência, o México teve importantes pintores, como Miguel Cabrera, Juan Cordero e um artista popular por excelência, Hermenegildo Bustos. Os últimos anos do século XIX deram dois extraordinários paisagistas: José María Velasco, um pintor de extraordinário virtuosismo, e Joaquim Clausell que, fascinado por Monet, Renoir, Sisley e Pizarro, entre outros, tornou-se um pós-impressionista de grande categoria. A esta época também pertence José Guadalupe Posada, admirável gravador, lembrado por suas caveiras emperiquitadas. Por outro lado, já bem dentro do século, o vulcanologista e pintor, natural de Jalisco, Gerardo Murillo, conhecido como o Doutor Atl, inventa a paisagem aérea, e deixa uma obra vibrante, dinâmica, de cores e traços relampejantes. Mas foi só com o surgimento dos grandes muralistas contemporâneos de Atl: Rivera, Siqueiros, Orozco, que a fama da pintura mexicana voou pelo mundo. Diego Rivera, do estado de Guanajuato, com afrescos na Secretaria de Educação, o Palácio Nacional e a escola de Chapingo, talvez seja o pintor mais versátil dos três: explorou com sucesso diversas escolas - incluindo o cubismo, e sua paleta distinguiu-se pela riqueza de seu colorido. David Alfaro Siqueiros, de Chihuahua, cujos murais decoram o Palácio das Belas Artes, a Escola Nacional Preparatória e o Centro Médico, baseia sua obra maior na busca de volumes rotundos. Por último, José Clemente Orozco, de Jalisco, cujos afrescos decoram, em Guadalajara, O Paraninfo (Sala para Atos Solenes) da Universidade, a Câmara dos Deputados e o Hospício Cabañas, possuindo um expressionismo feroz e apaixonado, de insuperável força. Intensamente nacionalistas, inspirados nas revoluções russa e mexicana, todos os três foram orientados por uma ânsia de liberdade de consciência total e consagraram em seus afrescos e telas as lutas sociais contra a opressão, a injustiça, os oligarcas, o militarismo e a Igreja. Ao lado deles imortalizou-se a grande pintora surrealista Frida Kahlo, esposa de Rivera. Rufino Tamayo e José Luis Cuevas representam uma ruptura que afasta a pintura mexicana do nacionalismo, e abre-a para todos os estilos de vanguarda. De Tamayo até o dia de hoje, a obra de pintores como Manuel Felguérez, Pedro Coronel e Vicente Rojo percorreu o mundo, deu uma visão distinta à imagem, igualmente válida, do México do fotógrafo Manuel Alvarez Bravo - e de sua esposa, Lola, natural do estado de Jalisco, com o mesmo sobrenome -, do fotógrafo de cinema Gabriel Figueroa e de Eisenstein, imagem para a qual contribuíram máximos símbolos mexicanos cinematográficos: da beleza, María Félix; da mexicanidade brava e tenra, o Índio Fernández; e do humor, Cantinflas. Na pintura, menção especial merece a obra de vários pintores extraordinários, do estado de Jalisco, como Jorge González Camarena, Raúl Anguiano, María Izquierdo, Carlos Orozco Romero, Juan Soriano, Jesús Reyes Ferreira, Roberto Montenegro e Martha Pacheco. O mais conhecido dos pintores contemporâneos de Jalisco, Alejandro Colunga, divide sua celebridade internacional com Julio Galán, de Coahuila, e naturalmente com Francisco Toledo, de Oaxaca, este último seguido de perto por seus conterrâneos Sergio Hernández e Alberto Ramírez. Como escultor de talento original, Sebastián conseguiu erguer esculturas monumentais em todo o México, bem como em muitos países, entre os quais os Estados Unidos e o Japão. No que diz respeito ao cinema mexicano, após uma época de ouro propiciada, em parte, pela Segunda Guerra Mundial e uma longa decadência, torna a surgir hoje com seus melhores talentos, embora limitados pela escassez de orçamento, que produziram filmes tão importantes como Danzón de María Novaro, El Callejón de los Milagros de Jorge Fons, Cronos de Guillermo del Toro, e Profundo Carmesí de Arturo Ripstein, este último ganhador de importantes prêmios em Veneza e Biarritz. De inventiva e beleza portentosas, os produtos do artesanato mexicano falam para os cinco sentidos. Para o olhar, todos, por suas formas e cores, tanto o multicolorido vestido de uma tehuana, (mulher do estado de Tehuantepec) quanto uma árvore da vida, de Metepec. Para o tato, a frieza e as concavidades dos cântaros de prata martelada, de Pachuca, no estado de Hidalgo. Para o paladar, os produtos artesanais comestíveis, como as figuras de rabanete, de Oaxaca, ou os rostos de coco, de Veracruz. Para o olfato, as caixas e grandes arcas de Olinalá, feitas com a madeira aromática da lináloe, (áloe bastarda) ou os escorpiões tecidos com bainhas de baunilha - com perdão para a redundância - de Papantla, utilizados para perfumar a roupa. Para o ouvido, os chocalhos de palma e penas de galinha, de Alfajayucan, em Hidalgo, as espalhafatosas matracas, os instrumentos musicais artesanais ou típicos, sejam violões, flautas, apitos, sejam marimbas, sem esquecer os pedaços móveis de ônix que, com o vento, batem uns com os outros e produzem um belo som que, sem dúvida, poderíamos chamar de eólico. E, naturalmente, para o ouvido também falam a explosão, o estrondo, do mais fulgurante e efêmero de seus artesanatos, mas nem por ser efêmero é menos belo e espetacular, é aquele das girândolas, busca-pés, touros, triquetraques, as grandes estrelas, os castelos e todos os outros artifícios pirotécnicos que culminam na festa e na loucura. O Museu Rafael Coronel de Máscaras Mexicanas, em Zacatecas, que contém mais de três mil peças em exibição, pode dar uma idéia da incomensurável variedade do artesanato mexicano. Sob o risco de cair em longas enumerações, é necessário assinalar que todos os objetos imagináveis foram recriados por nossos artesãos: vasilhas e baixelas, garrafas, espelhos, blusas e chapéus e outras vestes, cachimbos, brinquedos, móveis, vasos de flores, cinzeiros, cestas e bengalas, assim como uma série, também inumerável, de animais e monstros, e não apenas aqueles que, segundo Goya, são engendrados pelo sonho da razão, mas também de quimeras inofensivas, diabos travessos, sereias gorduchas, anjos cínicos e dragões domesticados, objetos, todos eles, feitos com grande variedade de materiais: madeira, papel, coral, conchas, obsidiana, barro, couro, flores, vidro, cerdas, sementes, ixtle (fibra têxtil), cobre e folha-de-flandres, penas, alabastro, cera, papel, seda, ferro ou chicle. Também pétalas de flores e serragem colorida, com as quais costuma-se alfombrar ruas inteiras. Destacam-se, entre os monstros, os multicoloridos alebrijes (animais fantásticos) de papel machê ou madeira lavrada, cujos serpentinos corpos, cristas maiúsculas e rabos excessivamente adornados e complicados, fazem pensar que saíram de um parque jurássico particular, inventado pela imaginação febril de um gênio oriental. De fato foram os membros da família Linares, do Distrito Federal, seus criadores originais. São dois os mercados de artesanato mais fascinantes do país: o mercado de Buenavista, no Distrito Federal, e San Pedro Tlaquepaque, una pequena cidadezinha sempre pulcra e alinhada, a um passo de Guadalajara. Quando vou até lá, gostaria de comprar uma travessa de Talavera de Puebla (louça típica desse estado), uma toalha de mesa bordada de Tenango de Doria, um quadro de fio de lã huichol (povo ameríndio que conserva suas tradições), um rebozo (xale) de Acatlán, uma casa em miniatura lavrada em casca de pochote (paineira) de Tepoztlán. Gostaria de comprar tudo. Impossível. Gostaria de comprar uma piñata, isto é, um desses cântaros de barro forrados com papel crepom ou com seda e que simulam estrelas, cenouras, barcos ou polvos, quebrá-la a pauladas e me banhar em seu conteúdo de frutas: laranjas e tejocotes (pequeno fruto amarelo típico do México), cana-de-açúcar e confeitos. Em 1662, o Cardeal Lorenzo Brancaccio, em um estudo chamado De usu et potu chocolate diatriba determinou, com ajuda da obra de Aristóteles, que o chocolate líquido não quebrava o jejum, pondo um fim, assim, a uma longa polêmica. Desde então, os clérigos podem desfrutar, mesmo nos dias de abstinência, de uma chávena de espumante chocolate. É tão poderoso este produto - o mais delicioso dos que o México deu ao mundo - que no célebre romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, um cura eleva-se vários centímetros no ar sempre que bebe chocolate. Não é à toa que Hernán Cortês, em suas Cartas de Relação para o Imperador Carlos V, afirmava que com apenas uma xícara do precioso líquido, um soldado conseguia marchar toda uma jornada sem se fatigar. Obtido do cacau, cujo nome científico, theobroma, significa "alimento dos deuses", o chocolate logo conquistou os corações de diversas figuras da realeza européia, entre elas Maria Teresa de Áustria, Madame de Maintenon - que ensinara Luis XV a bebê-lo - e a Emperatriz Eugênia de Montijo. Hoje, mais na forma sólida do que na líquida, o chocolate faz as delícias de milhões de pessoas dos cinco continentes. O México deu também ao mundo, entre outras coisas, a baunilha, o abacate, o amendoim e o jitomate. Coração de donzela asteca, chamado de pomodoro pelos italianos - maçã de ouro - este fruto, ao qual Pablo Neruda dedicou uma de suas mais belas odes elementares, e que também é conhecido como tomate, demorou para ser aceito na Europa, mas hoje faz parte indispensável da culinária da mais alta linhagem desse continente. As pizzas e as massas seriam inconcebíveis sem ele. Assim como o goulash húngaro, o bacalhau à biscainha e o pão torrado com tomate, que faz parte do café da manhã cotidiano dos catalães. Também não existiria, naturalmente, o molho ketchup. E os franceses não desfrutariam do frango à Marengo, inventado pelo cozinheiro de Napoleão durante a célebre batalha do mesmo nome. Na sua Verdadeira História da Conquista da Nova Espanha, Bernal Díaz del Castillo narra a suntuosidade da mesa do Imperador Montezuma, onde, além de aves como a perdiz, o faisão e o peru, eram servidos peixes frescos trazidos por estafetas do Golfo do México. Ao se consolidar a conquista, a Europa, por sua vez, deu ao México inúmeros produtos, animais e frutas como o porco, a vaca, o trigo, a cebola, o alho, os cítricos, e, naturalmente, as cobiçadas especiarias. Aconteceu, assim, uma prodigiosa e fecunda miscigenação, da qual nasceu uma esplêndida cozinha à altura da francesa e da chinesa. Tão extraordinária foi essa miscigenação, que não menos de doze ingredientes do prato nacional, o mole - inventado por freiras da cidade de Puebla - não têm origem mexicana, nem européia, mas asiática. Entre eles, o cominho da Líbia, a canela do Ceilão, o anis do Egito e o coentro da Babilônia. A culinária mexicana é infinita e, vale dizer definitivamente: não tem nada a ver com a culinária "chicana" ou Tex-Mex que viaja pelo mundo com passaporte falso, e nem sempre é picante - apesar do México também ter dado à civilização uma verdadeira constelação de pimentas de todos os tamanhos, formas, cores e sabores -, porquanto abundam as iguarias de sabor suave e delicado e, é claro, as sobremesas. Do seu interminável número recomendamos, alem do "mole", os chiles en nogada (pimentões em molho de nozes), de Puebla, a cochinita pibil (leitoa com molho de urucum com laranja ), de Yucatán, bem como o pozole (cozido com carne de porco e enormes grãos de milho alvíssimo), e a birria (iguaria preparada com carne de cabrito desfiada) de Jalisco. E, em toda a república, os insubstituíveis tacos feitos com tortilha de milho e recheios diversos. Para o café da manhã e o lanche, o México oferece uma infinidade de pães doces e bolos, produtos da padaria e confeitaria de origem espanhola, que foram beneficiadas pela influência francesa e vienense. E, para espanto de próprios e estranhos, o nosso povo continua a produzir, a cada dia 2 de novembro, que é o Dia de Finados, caveirinhas e diminutos ossos de açúcar e "torrone", assim como um delicioso Pão de Defunto. E os vegetarianos, entre outras coisas, podem alimentar-se com iguarias de flores, como a flor da abóbora, a da pita e a do colorín (árvore típica do México), e se refrescar com a água púrpura das flores da jamaica (planta malvácea). Como acompanhante para as comidas, é ideal a nobre cerveja mexicana, famosa no mundo inteiro, embora, quiçá nem tanto quanto o aperitivo por excelência: o tequila. Bebida que nasceu e é produzida exclusivamente na região de Tequila, no estado de Jalisco, destilada de um "maguey" - ou agave - azul, Tequilana Weber, o tequila serve para brindar à felicidade e a saúde em quase todos os idiomas do planeta. É assim que o México fala, com a boca cheia, através de sua cozinha. Com a vantagem adicional de que em suas grandes cidades, o viajante encontra restaurantes de primeira classe de cozinha francesa, italiana, japonesa, chinesa, espanhola, indiana. Na literatura, tudo começou pela chamada Décima Musa: Juana Inés de la Cruz. As letras do México falaram assim ao mundo, pela vez primeira, com a voz de uma mulher. É verdade que, como Miguel León Portilla nos lembra, o mundo asteca teve grandes poetas, entre eles Nezahualcóyotl e a poetisa Macuilxochitzin, mas, como produto da miscigenação cultural, foi uma freira, Sor Juana, rebelde, lúcida, erudita, quem escreveu, - no século XVII - alguns dos mais belos poemas de uma língua, a castelhana, que estava já influenciada pela doçura e a música da linguagem mexicana. Seqüela do melhor da picaresca espanhola, em 1816 aparece o delicioso romance El Periquillo Sarniento- de Fernández de Lizardi. Mas, embora no século XIX surgissem alguns romancistas importantes, foi só na nossa centúria que a literatura mexicana se manifestou com toda sua força. É no estado de Jalisco que nascem alguns dos escritores mais significativos: Mariano Azuela, narrador magistral do mundo turbulento da Revolução Mexicana -aventura literária que compartilhou com Martín Luis Guzmán -; Agustín Yáñez, que inaugurou o romance moderno mexicano; Juan Rulfo, o homem que fez com que os vivos conversassem com os mortos, e Juan José Arreola, artífice da linguagem. Na primeira metade do século, destacaram-se Carlos Pellicer que foi, entre outras coisas, um grande cantor da paisagem mexicana e Ramón López Velarde, o poeta da "Suave pátria". E, em breve lapso - 1926, 1927 -, o México deu, nas vozes de Germán List e Maples Arce, uma resposta ao ultraísmo e ao futurismo europeus: o estridentismo, enquanto que o escritor, natural de Monterrey, Alfonso Reyes, um escritor polígrafo de imensa erudição, tornava-se o patriarca da literatura e, por volta do final dos anos trinta, José Gorostiza publicava Muerte sin Fin, um extenso poema metafísico, escuro e transparente, ao mesmo tempo, de avassaladora beleza. Em Jalisco, distinguiu-se um grande poeta que decidiu torcer o pescoço do cisne para dar morte, assim, à beleza falsa, de ouropel, à pieguice: Enrique González Martínez. Em meados do século, começa a se destacar um romancista de extraordinária força e beleza, lutador da esquerda que sempre soube viver com o valor e a autenticidade com que escrevia: José Revueltas. Vive ainda o mexicano no labirinto de sua solidão? Ou já se integrou ao labirinto, não menos desolador, da aldeia global de MacLuhan? Já faz cerca de cinqüenta anos que o grande ensaísta Octavio Paz publicou aquela até hoje é considerada como a análise mais lúcida e poética da alma do mexicano: O Labirinto da Solidão. O tempo dirá se teremos ou não teremos mudado. Enquanto isso, Paz firmou-se como um dos maiores ensaístas e poetas que o México já deu, e, em 1991, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. É justo destacar, como antecedente do livro de Paz sobre a essência da maneira de ser do mexicano, o lúcido e profundo estudo El Perfil del Hombre y la Cultura en México, de Samuel Ramos que, junto com Leopoldo Zea e Luis Villoro, faz parte de uma pequena, porém brilhante, constelação de filósofos. Como romancista, conhecido no mundo inteiro, Carlos Fuentes foi o primeiro em cuja prosa foi decantada - e particularmente no primeiro romance urbano de nossa literatura, La Región más Transparente - a influência de James Joyce, John Dos Passos e outros grandes da literatura mundial. Na poesia, a obra despojada, visceral, direta, transbordante de ternura, de Jaime Sabines contrasta com a folhagem resplandecente, barroca, cegante, multicolorida, da poesia de Marco Antonio Montes de Oca. Outros grandes poetas, de voz própria, original, são Eduardo Lizalde, Homero Aridjis, José Emilio Pacheco, Jorge Esquinca. E entre os romancistas jovens figuram Héctor Aguilar Camín e Ignacio Solares. O México, no presente século, fala também com a voz de suas romancistas mulheres: Rosario Castellanos, Elena Poniatowska, Angeles Mastreta, Margo Glantz, Silvia Molina, Carmen Boullosa, Aline Petterson e Sara Sefchovich. E deu também um brilhante e profundo analista da realidade mexicana, em tudo aquilo que ela tem de grandeza trágica, barroca e cômica: Carlos Monsiváis. Jalisco, fértil em talentos como sempre, conta entre seus grandes homens de letras contemporâneos o dramaturgo Vicente Leñero, o romancista Dante Medina, o destacado historiador José María Muriá, e o também historiador e crítico literário José Luis Martínez. E o México fala também com as vozes de seus imigrantes. A migração mais importante, a da Guerra Civil Espanhola, trouxe para nós personagens tão notáveis quanto o cineasta Luis Buñuel, o poeta León Felipe, o filósofo José Gaos, o arquiteto Félix Candela, a pintora catalã Remedios Varo. Outros, chegados ao México por diversas circunstâncias, apaixonaram-se pelo país e aqui permaneceram por muitos anos ou pela vida inteira, como os guatemaltecos Carlos Mérida, pintor, Luis Cardoza y Aragón, crítico de arte, e o escritor Tito Monterroso; o escritor colombiano Alvaro Mutis; a pintora inglesa Leonora Carrington; o historiador de arte alemão Paul Westheim, a célebre fotógrafa italiana Tina Modotti. São uma multidão. Uma multidão de vozes que já são nossas desde há muito tempo. E o México, certamente, fala com sua música. Já faz mais de cento e trinta anos, nas ruas de Viena ou Paris, Madri, Londres, Moscou, e em festas, bailes, quermesses e circos, milhões e milhões de pessoas já escutaram a valsa mais famosa do mundo, sem conhecerem o nome, nem da valsa: Sobre las Olas (Sobre as Ondas), nem do seu autor: o mexicano Juventino Rosas, que a compôs em 1888. Ficaram célebres também, durante longas temporadas, as belas composições de Manuel M. Ponce e María Greever. Mas uma outra classe de música mexicana, mais popular, transcendeu também as fronteiras. Em menor escala, os corridos, canções cuja letra, em octossílabos, narra tanto batalhas quanto crimes passionais, bem como façanhas de toda natureza. Porém, mais longe, muito mais longe no gosto universal, chegaram as canções de Agustín Lara, entre elas, por exemplo, Pensa em Mim, tema do filme Tacones Lejanos de Almodóvar. E, certamente, Vereda Tropical de Gonzalo Curiel, cantada também em alemão, inglês, francês, italiano, e a infalível Perfídia de Alberto Domínguez. Atrevo-me a afirmar que La Paloma, embora sendo original de Havana, acabou sendo mexicanizada pela tragédia da Imperatriz Carlota. As famosas canções "rancheiras" são também conhecidas em todo o planeta, por arte de cantores, em grande número mulheres, com voz, talento e sensibilidade excepcionais, como Lucha Villa, Chavela Vargas e Lola Beltrán. Do México é também o celebérrimo Mariachi que é geralmente um conjunto de três ou quatro violinos, uma viola, um violão de seis cordas, um contrabaixo e dois trompetes, e que constitui uma indispensável, vibrante companhia nas festas e banquetes. Alguns afirmam que a palavra deriva-se do vocábulo francês mariage, porque eram eles os músicos que tocavam nos casamentos. Mas outros afirmam que provêm da árvore desse nome, no dialeto cora: mariachi, que cresce em Nayarit e de cuja madeira fabricavam-se instrumentos musicais e estrados para se dançar. O mariachi nasce em Jalisco e lá nasce também a dança nacional mexicana, o Jarabe Tapatío (conhecido internacionalmente como a Dança do Sombrero), belo e ágil sapateado com bate-pé de calcanhar e diversas circunvoluções, dançado por um charro (cavaleiro rural) e uma china poblana.(mulher vistosamente ataviada que, segundo a tradição, viera em um navio da China). Convém dizer que as danças mexicanas regionais e folclóricas são infinitas. Uma forma de admirá-las, tanto no México como no exterior, e ficar fascinado com o seu encanto e originalidade, é possível graças àqueles que são considerados como os dois balés folclóricos mais autênticos e esplêndidos de todo o país: o de Amalia Hernández - famoso em todo o mundo -, e o da Universidade de Guadalajara, que costuma se apresentar aos domingos no belíssimo Teatro Degollado da capital de Jalisco, construído pelo arquiteto Jacobo Gálvez. O México deu também alguns importantes compositores da corrente da música séria, a qual talvez poderíamos continuar a chamar de clássica. É imprescindível falar de Julián Carrillo, que após compor várias óperas, sinfonias e quartetos, e com base em um sistema musical de sua invenção, chamado de sonido 13, surpreendeu seus contemporâneos com obras escritas em quartos, oitavos e dezesseis avos de tom. Também não poderia faltar Carlos Chávez, nascido na Cidade do México, autor de numerosas obras sinfônicas e de câmara, uma ópera e seis sinfonias, que lhe garantiram reconhecimento mundial. De estilo rigoroso e esquemático, evoluiu posteriormente para asa formas clássicas. Entre os compositores contemporâneos destacam-se Daniel Catán, Mario Lavista e Manuel de Elías. Jalisco, por sua vez, é responsável por uma contribuição fundamental à música mexicana, graças a compositores de estilos e propósitos variados, mas todos eles de inspiração privilegiada. Em um disco da Orquestra Filarmônica de Jalisco, dirigida por seu titular, o Maestro Guillermo Salvador, pode se ouvir uma antologia de obras mexicanas na qual estes compositores aparecem acompanhados de vários artistas ilustres de outros estados. Não poderia faltar, em uma antologia dessa natureza, a já mencionada, e milhões de vezes ouvida, valsa Sobre las Olas do compositor Juventino Rosas, do Estado de Guanajuato, nem tampouco, pletórico de alegria e luminosa nostalgia, o Danzón Número 2 de Arturo Márquez, músico do Estado de Sinaloa. Do grande músico Carlos Chávez, também já mencionado, a Sinfonia Índia, poema de elaborada e enorme beleza. As outras peças são composições de talentosos autores do estado de Jalisco, e algumas têm tido imensa popularidade: a magnífica canção Bésame Mucho de Consuelo Velázquez, que já deu a volta ao mundo. Guadalajara de Pepe Guízar, que soube cantar como ninguém a beleza ímpar da capital de Jalisco. E encerramos com chave de ouro com a obra de dois compositores de grande estatura: os sons de Mariachi de Blas Galindo e o Huapango de José Pablo Moncayo. Conquanto a grande música mexicana não começa nem termina com esta muito breve seleção de composições, podemos afirmar que esta constitui uma amostra esplêndida de formosíssimas melodias, ritmos surpreendentes, arrebatamentos insólitos e suaves modulações, baseadas, todas essas virtudes, em magnífica orquestração. E resulta muito interessante assinalar, por exemplo, que, com educação musical diferente e uma distinta e original expressão cada um deles, estes dois últimos compositores, Galindo e Moncayo, assim como muitos outros de seus companheiros, souberam compreender e expressar a alma, a essência profunda da música nacional, para transformá-la em verdadeiros poemas. Coisa muito semelhante àquilo que fizeram, em seus respectivos países, os tchecos Smetana e Dvorak, o norueguês Grieg e o húngaro Bartok. É assim que o México fala para o mundo, com suas mil vozes. Guadalajara, Jalisco |